13.5.08

A percepção do jovem como sujeito específico ainda está em construção no Brasil e os debates sobre o tema permanecem abertos

Por Helene Wendel Abramo*

A noção de que o jovem deve ser tomado como sujeito de direitos vem sendo cada vez mais acionada por aqueles que tomam a defesa dos jovens no Brasil. Esta afirmação ganha importância na medida em que busca deslocar a perspectiva, ainda dominante na opinião pública, do
jovem como problema para si mesmo e para a sociedade, assim como a ótica que o toma apenas na sua dimensão de sujeito em preparação para o futuro.

No Brasil, essa noção ganhou força e legitimidade por meio de uma importante e longa mobilização de diversos atores, no processo de luta contra a ditadura militar e seus efeitos mais perversos. Até então, a expressão legal existente, o Código de Menores, estava dirigido para as situações de desvio, configuradas pela vivência de situações de risco ou ações delinqüentes.

O foco real desse arcabouço jurídico eram as crianças e os adolescentes pertencentes a famílias pobres e “desestruturadas”, com uma compreensão de que essas situações conduziam potencialmente tais “menores” a uma conduta de desvio que era preciso controlar, reprimir e prevenir. Desse modo, acabava por operar uma perspectiva quase de criminalização das crianças pobres do país.

Para se contrapor a uma crescente onda de repressão e violência contra tais “menores de idade”, foi desencadeado, nos últimos anos da ditadura militar, um movimento envolvendo uma série de atores (entre juristas, funcionários públicos, militantes de movimentos sociais e comunitários), demandando a defesa dos direitos destas crianças, para que passassem a ser tratados como sujeitos de direitos e não como elementos perigosos para a sociedade. Foi, desse modo, uma luta pela superação da ótica problematizadora da infância, que se afirmava também como uma luta contra a desigualdade no tratamento das crianças dos diferentes segmentos sociais.

Essa mobilização logrou pautar a questão da infância e da adolescência na agenda pública, engendrou o desenvolvimento de políticas e programas, e resultou, no processo da elaboração da Constituinte, na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, abarcando todos os aspectos da vida e criando uma verdadeira teia de proteção às crianças e aos adolescentes do país.

O quanto conseguimos garantir estes direitos é uma questão ainda em aberto, mas não há dúvida de que foi operada uma importante mudança de postura com relação à infância no Brasil, e que é essa mudança de postura, e o vigor desta idéia sobre os direitos das crianças e adolescentes, que podem funcionar como força para a execução de políticas que garantam o cumprimento destes direitos. Nesse sentido, é preciso lembrar que a luta continua em curso, em torno da polêmica que tem polarizado a sociedade: a questão do limite de idade para a imputabilidade penal.

Construção social

Essa breve história mostra que os direitos são uma construção social e não um dado natural. Traduzem uma determinada concepção que, num dado momento, uma sociedade formula a respeito do que é justo, do que é digno, do que é essencial para a vida humana em sociedade. Por isso mesmo, são noções que traduzem visões distintas sobre o que é o humano e sobre como deve se organizar a vida social; e o seu estabelecimento como direitos reconhecidos se faz sempre por meio da disputa política.

Na história da sociedade ocidental moderna, os direitos foram sendo conquistados por meio de lutas sociais: primeiro, os direitos cívicos; depois os direitos políticos e, somente na segunda metade do século passado, os direitos sociais, demandados pelas classes trabalhadoras na perspectiva de estabelecimento dos padrões de uma vida digna. Hoje, vivemos um período de expressão das demandas das diferentes subjetividades, ou dos “sujeitos singulares”: as mulheres, os negros, os deficientes físicos, os idosos. São situações de vida, atravessadas por vários planos de diferenças e desigualdades, que demandam o estabelecimento de regras e medidas sociais para serem incluídos na condição de cidadania.

Nesse sentido é que surge, mais recentemente, a questão dos jovens, para além da adolescência, dos 15 aos 24 ou dos 18 aos 29 anos (as faixas etárias variam segundo diferentes postulações), a partir da constatação da existência de uma condição juvenil que se diferencia da infância, por um lado, e da condição adulta, por outro. Um período que se alonga bastante e não se constitui mais numa breve passagem, mas em toda uma etapa da vida, com necessidades e demandas específicas.

Por muito tempo “invisíveis” e sem interlocutores públicos, na última década muitos atores juvenis vieram se manifestar (muitas vezes por meio de uma linguagem mais cultural que propriamente política) a respeito das questões que os afetam nesta conjuntura de virada de século, e que não estão sendo respondidas nem pelas soluções desenvolvidas para a infância e adolescência, nem pelos serviços estruturados para a população adulta. Tais questões se relacionam a necessidades ligadas a diversas dimensões de suas vidas e são, politicamente, “novas”, sob a ótica desta especificidade, ou seja, não constam ainda do repertório das soluções já testadas e estruturadas.

Além da reivindicação do cumprimento do direito à educação – a uma educação para todos, completa e de qualidade – (que, na verdade, é o único direito reconhecido aos jovens, no plano retórico, pelo menos), os jovens têm expressado demandas por mecanismos de apoio e participação em várias outras áreas: trabalho, saúde, lazer, cultura, circulação pelo espaço público, política. Tomar os jovens como sujeito de direitos significa, portanto, em primeiro lugar, reconhecer a especificidade de sua condição e a singularidade da sua experiência geracional; significa também olhar suas demandas como relevantes e pertinentes ao debate público.

Exige, como aconteceu no caso das crianças e adolescentes, que se vá além da ótica que apreende os jovens como risco ou problema social, assim como da perspectiva que os situa apenas como sujeitos voltados para o futuro, negligenciando a sua vida e necessidades no presente. Implica, necessariamente, incorporar a participação de seus interlocutores (aqueles que expressam esta experiência e condição singular) nas disputas que definem as formulações sobre os direitos e sobre as políticas. Ou seja, significa abrir um debate público democrático sobre tal pauta de demandas e sobre o modo como podem e devem ser respondidas pelo estado e pela sociedade.

Foi apenas muito recentemente que a questão da juventude entrou para a pauta política e ganhou canais institucionais de resolução, que se materializam na criação de mecanismos institucionais e canais públicos de diálogo: no plano do executivo, além da criação de uma série de secretarias ou coordenadorias municipais, a criação, em 2005, da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Juventude; no legislativo, a criação de comissões, como a da Câmara Municipal de São Paulo, em 2001, e as da Câmara Federal, a partir de 2003, que já produziram vários projetos de lei, em tramitação, inclusive. Todos esses processos têm resultado na formulação de uma pauta de políticas específicas dirigidas a jovens, diferentes das dirigidas às crianças, cujas diretrizes, porém, ainda estão em debate.

Poderíamos dizer que estamos no momento da enunciação dos direitos dos jovens, ou seja, em pleno estágio da definição, invenção e disputa do que venham a ser tais direitos. Um dos projetos de lei apresentados pela Frente Parlamentar da Câmara Federal é a proposta de um Estatuto da Juventude, tendo como referência a faixa etária entre 15 e 29 anos. No entanto, se cada vez mais ganha clareza a idéia de que é necessário ter ações e políticas específicas para responder às questões singulares vividas pelos jovens, que os seus direitos devem, assim, ser expressos e garantidos por meio de políticas públicas, não é tão claro se devem ser definidas num estatuto jurídico. Este é um debate em aberto e, com certeza, sua resolução será tanto mais significativa quanto maior número de atores, principalmente os jovens, entrarem e se posicionarem a esse respeito.

* Helena Wendel Abramo é socióloga e foi coordenadora do Projeto Juventude. É consultora da Comissão de Juventude da Câmara Municipal de São Paulo e membro do Conselho Nacional da Juventude

Imagem - Pastoral da Juventude

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