26.11.07

Olhem pro espelho

Fui para Barra do Ribeira no último final de semana. No ônibus a caminho de Iguape, passando pelos extensos bananais de Itariri, Pedro de Toledo e Miracatu, me veio esse texto que segue abaixo. Espero que gostem =]


Espelho, espelho meu...

Já foi pedra, e causou tropeço. Já foi degrau, e fez tombar. Já foi banco da praça. Nunca enxergou direito mesmo, bateu feio o joelho.

Mesmo atordoado seguiu em frente. Caiu, levantou e caminhou. Hoje corre; e cai, mas não pára de correr.

Meio capenga, já foi muro. Nunca enxergou direito mesmo. Bateu a cara. Quebrou o nariz e perdeu os atacantes. O sorriso, que já era amarelo, ficou amarelo e desfalcado e hoje ainda, quase sempre de azulejo.

Insaciável em sua gastura, insatisfeito em ser muro, quis ser arranha-céu. E foi gêmeos, que desabaram sobre a própria cabeça.

Manco, caolho, aleijado, com a cara torta e esclerosado, mas ainda insaciável em sua gastura, agora é abismo. Nunca enxergou direito mesmo. Desenvolvimento! E hoje corre, rumo ao abismo. E cai?!

Mas... oh! Evolução? Uma esperança? Ou será apenas mais uma adaptação, o mesmo círculo vicioso com outra máscara que não causa mudança? Não, não. É preciso e positivo acreditar. Sistemia físico-técnico-espírito-sócio-afetivo-epistemológico-sensitivo-comunicacional. Algumas vozes já assumem que a hegemonia precisa ruir, que a necessidade premente é evoluir, que não dá mais pra se encaixar e seguir o fluxo. O fluxo é o mercado e sensações são mercadorias.

Sim, o mundo precisa mudar. Que mundo precisa mudar? "O que está embaixo é como o que está no alto. O que está no alto é como o que está embaixo". Assim falava Hermes Trimegisto.

O interior é mundo, o mundo é interior. E o interior pode ser pedra, degrau, banco da praça, muro e arranha-céu. E tantas outras coisas. O interior é o que se faz dele e por ele nos lugares e nos mundos, e vice-versa.

Hakim Bey diz que "a Babilônia toma suas abstrações como realidade". O homem pode ser seu próprio abismo. Entendendo o mundo como espelho, se torna duro olhar no espelho.

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2.11.07

Sai que a comida é minha!

Era muito bom para ser verdade. E tão fácil. Perder tempo seria o maior dos erros, pois oportunidades como esta não acontecem todos os dias. Uma montanha doce como aquela não podia ser desperdiçada. Sabia que precisava correr, avisar os companheiros e mobilizar para o trabalho.

Afinal, acabou de acabar, mas não demora muito outro inverno vem aí e a dispensa não poderá estar vazia, a galeria de fungos necessitava de substrato... Senão, como alimentaria toda a comunidade?
Nessas horas o dever chama. Era hora de usar as seis pernas tão bem treinadas para estas responsabilidades. Mas com certeza não aguentaria. Que adianta se enganar. Perder tempo pensando é um erro, não há folga pra isso. Quando não faz, sempre dá pano pra manga. E além do mais ainda há os gigantes. Gigantes são os macacos pelados, nunca se sabe qual temperamento domina seu momento. Se um deles chegar...
Tinha consciência plena que não deveria, mas o bolo era tão bonito... O cheiro de aimpim... Sem demora. Um pedacinho só e correria como nunca. Rápido como o Papa Léguas! O risco aumentaria, mas sua compulsão só fazia berrar em sua cabecinha atordoada. Não aguentou. Correu até o grande bolo de aipim que se encontrava sobre uma boleira laranja com a tampa um tanto torta, passou pelo vão que se formava e deu uma mordida. Ah! Agora sim poderia cumprir satisfeito sua missão.

Era uma formiga operária. Explorar a casa em busca de alimentos doces e avisar o operariado quando topasse com guloseimas era a sua missão. Somente as formigas mais habilidosas e destemidas ocupavam este cargo, que necessitava de destreza, velocidade e muita inteligência. Valentes, desafiam os perigos do mundo dos gigantes sozinhas. As outras vão em bando depois que as exploradoras dão o sinal. Enfrentar os grandes pés e aquela impiedosa atitude dos macacos pelados com os insetos que interagiam no território... Cada excursão era um delicioso desafio para esta formiga responsável pela segurança alimentar da comunidade. Para as famílias cada saída a campo era motivo de preocupação e apreensão.

Desde criança já apresentava um metabolismo mais acelerado que o normal - os pais chegaram a desconfiar de hiperatividade. Sempre quis ser uma operária exploradora. O que faria, se não viver a emoção do desconhecido? E sempre foi apoiado pelos pais, apesar dos riscos. Porque explorar o mundo dos gigantes era motivo de orgulho para qualquer família de formigas. Sair por aí em busca de comida era das mais importantes funções da sociedade formiguense.

Os gigantes construíram caixas gigantes sobre o mundo das formigas. O tempo passou e as formigas, espertas, se adaptaram. Os jardins, as paredes... tanto lugar bom pra formigueiros! E então primavera e verão viraram estações de aventura para as destemidas formigas exploradoras, que precisam disputar com os macacos pelados boa parte do alimento que comerão nas estações frias. Não importa se era resto, alimentos que iam pro lixo. Era só um macaco pelado pegar formigas trabalhando que era atingido por um surto de antropocentrismo e trucidar as inocentes operárias.

Tinha acabado de passar pelo vão, saindo da boleira. Agora era a hora de correr como nunca. Mal pensou que não era um bom momento para aparecer um gigante, eis que surge pela porta da cozinha. E viu a formiga. Ela correu, sabendo que não adiantaria. A mão do macaco pelado já descia a toda sobre seu corpo.

De repente acordou, não se mexeu por instante e levantou ainda meio babaca de sono. O nariz estava irritado. Devia ser o ar condicionado, comentou já com a esposa que não está legal o aparelho, provavelmente sujo e cheio de ácaros, só não tomou nenhuma atitude. Foi até o banheiro, olhou para o espelho, abriu a torneira e jogou água no rosto. Agora já podia ir tomar o café da manhã, só precisava pegar o notebook, estava esperando um e-mail importantíssimo para aquela manhã.

Caminhando até cozinha viu um pontinho preto se mechendo no chão do corredor, um tanto à frente. Se aproximou e reconheceu uma formiga carregando um pedaço de não sei o quê. Lembrou do sonho que teve e pensou nas formigas, em todas que já matou. Chegou então à conclusão que, por mais que fosse um homem estudado, viajado, moderno, inteligente e muito bem educado, "fino", como diriam as madames, por vezes e outras se pegava em disputa por alimento com os insetos de sua casa.

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